E porque é assim?
O Karatê-dô já foi testado como Arte de combate por praticantes em guerras (Japão na II Guerra Mundial, ilha de Okinawa contra piratas, etc), já foi (e continua sendo) testado como esporte até os dias de hoje por diversas federações. Já foi inclusive transformado em atividade aeróbica com músicas e coreografias para queimar calorias.
De todas as formas de Karatê que existem no mundo afora acredito no Karatê como Arte Marcial pura, ou seja, defesa pessoal. Essa forma de Karatê é o que meu mestre e eu chamamos (e acreditamos) ser o futuro da nossa arte e que leva a algo maior: o Karatê como Terapia.
Quando uma pessoa se propõe a treinar karatê-dô ela terá contato com uma realidade diferente, um novo ambiente. A começar pela roupa, um kimono branco e uma faixa branca. Aquelas vestimentas significam pureza de espírito do praticante, disciplina e uniformidade entre os colegas. Nesse momento o cérebro e costumes do novo praticante começam a ser trabalhados. O mesmo terá que ter humildade para aceitar outras roupas e irá se despir de armaduras psicológicas modernas como: moda, celular, chaves, adereços. Será apenas ele (ou ela) e um kimono branco.
Já na prática o individuo irá se deparar com a verdade sobre o seu corpo: a falta de coordenação inicial, o desequilíbrio, o descontrole na respiração, a falta de força e flexibilidade, a vergonha perante os outros, a contração muscular excessiva entre outros fatores irão aparecer como desafios a serem vencidos pelo iniciante. Somente alguém com muita persistência e humildade poderá seguir enfrentado suas fraquezas em busca de uma evolução física nesses aspectos. Até aqui nada de novo, pois as mesmas sensações podem ser sentidas em outras atividades esportivas.
Então onde o Karatê se diferencia?
No intenção do combate. Toda a preparação física e adaptação a um novo meio se justifica, pelo combate. E esse é interno e externo. Quando um praticante repete dezenas de vezes um movimento até o mesmo ficar natural ao seu corpo e cérebro, poderá aplicar com convicção na hora da luta. Quando o praticante recebe pancadas no treino e sai com hematomas, ficará mais forte para uma futura pancada. Quando o praticante perde um combate ficará mais humildade e terá a oportunidade de aprender a tirar pequenas vitórias, mesmo na derrota (ensinamento de Malheiros Sensei).
No kumite (e dojo) o praticante é levado a outro patamar. Ele não poderá fingir que não tem medo, orgulho, raiva, ansiedade, calma, receio e coragem. É uma situação que atavicamente provoca a sensação de vida ou morte ao praticante sério e dedicado. No caso, se ele for acertado muitas vezes e não conseguir se defender seria como se estivesse morto, na natureza. E se alguém não consegue se proteger perante um agressor - como irá viver? Com medo de tudo e todos. Achar-se-á um fraco, com uma baixa estima. Nesse ponto é que o karatê-dô terapia entra. Lidando com nossas fraquezas e orgulhos. Lidando com a nossa estima. Encarando quem realmente é e oportunizando revelações (ou insights, como é chamado na psicanálise – Satori, no budismo) sobre nós mesmos. Tenho notado isso na minha prática, em colegas e alunos as mudanças que a prática de karatê-dô proporciona.
Não há como fugir de mudanças consideráveis na sua vida quando você pratica essa Arte Marcial.
Sua auto-estima melhora sua forma de perceber o mundo ao seu redor se modifica e a sua mente e espírito te mostram Caminhos que você não conseguia ver antes.
Sua mente vai deixando o lixo para trás e esvaziando-se, seu espírito fica mais forte assim como o seu corpo. Você não precisa mais lidar com tantas inseguranças e percebe que se você se esforçar, irá conseguir o que precisa. Ora, no Karatê temos que repetir movimentos dezenas de vezes, por vezes, até centenas de vezes visando atingir uma forma adequada. O suor, sacrifício, dor, angústia, choro, alegria, sangue e hematomas se justificam na sua evolução e demonstram que se você faz isso no dojo, poderá fazer o mesmo na vida. Cair e levantar, e melhorar. Persistir.
Na última aula que tive com meu mestre (Malheiros Sensei) um iniciante perguntou para ele se a técnica explicada e que estávamos treinados não seria arriscada, no caso de um contra-ataque. Meu mestre respondeu: “- desde que nascemos estamos correndo riscos. Ainda no útero materno estamos expostos a riscos. Cabe a nós enfrentá-los.”
Se o Caminho do Karatê te revela coisas caberá a cada um usar essa força interna para promover as mudanças necessárias na sua vida. Muitos desistem do treino, pois a verdade sobre si mesmo é, muitas vezes, dolorosa. Quando você enxerga a verdade sobre a sua condição, fica difícil não tomar uma atitude. E isso o Karatê proporciona: a Verdade sobre você.
Isso foi bem mostrado na série de filmes “Matrix” onde foi oferecido ao personagem principal Neo uma pílula azul e outra vermelha. Tomando a azul, Neo voltará à sua ilusória e superficial vida; se optar pela pílula vermelha, conhecerá a verdade que está por detrás do mundo que julga ser real. Neo arrisca e opta pela pílula vermelha, conhecendo, finalmente, a complexa verdade por detrás do seu mundo de aparências. A partir deste simples enunciado entre a dicotomia do mundo real e do mundo ilusório ou aparente, levantam-se muitas leituras filosóficas e religiosas. Estas pílulas representam, também, uma metáfora da condição humana: o homem que se resigna de forma dogmática e aceita passivamente tudo o que existe à sua volta ou o homem que deseja libertar-se e conhecer a verdade absoluta das coisas e o acesso ao conhecimento?
O mesmo acontece em histórias como “Alice no País das Maravilhas” e na famosa “Alegoria da Caverna” do filósofo Platão. Conheço inúmeros praticantes que quando começaram a enxergar essa faceta do Karatê, se distanciaram do mesmo. E em outros momentos, voltaram a treinar, quem sabe para experimentar mais um pouco sobre eles mesmos, porém sem nunca concluir e evoluir totalmente na prática. Existem mil atividades físicas, mesmo formas falsas e picaretas de Artes Marciais, que não irão te direcionar ao Caminho da verdade.
Cada indivíduo tem a sua forma de ver o mundo. A sua maneira, cada um acredita em algo. Não sou contra as pessoas viverem mentiras sobre si mesmas, entretanto sou a favor das mesmas buscarem todas as opções, verdadeiras ou falsas. Quando alguém escolhe o seu Caminho, que o faça de forma consciente (e com convicção) e que seja feliz.
Eu já fiz a minha escolha, e você?
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