quinta-feira, 24 de maio de 2012

Por que praticar Karatê-Dô?


Lá vão quatro décadas desde que, pela primeira vez, vesti o traje (gi) para a prática da arte, que desde então me fez súdito de seu caminho (Do).  Até hoje não sei responder exatamente o porquê daquele impulso que me levou a fazê-lo.  Afinal, era um adolescente.  Creio ser, inicialmente, uma curiosidade estética, pela beleza, ritmo e sincronia dos movimentos, cuja complexidade só muito recentemente consegui entender. 
Havia também a magia da segurança que a arte de lutar pode emprestar, e logo, praticando, entendi que o universo a ser explorado era muito mais amplo e profundo.

Não é fácil dizer ao iniciante o que ele vai encontrar, senão aquilo que parece óbvio, no desenvolvimento e domínio de técnicas, nos benefícios físicos e, por certo, psicológicos.

O importante é mostrar-lhe o mistério que está por detrás da arte que leva a um praticante mantê-la dentro de si por quarenta anos, como no meu caso, e em muitos, por mais até, até a morte, como passou com o mestre Okinawense, Funakoshi, que trouxe o Karate desde a ilha ao sul para a ilha central do Japão e, no dia de seu falecimento, pela manhã, já idoso com 87 anos, praticou sua rotina de movimentos habituais.

É possível perceber por essa lembrança que não se trata simplesmente de fazer o corpo se movimentar, dar-lhe exercício como aconselham os médicos, mas de uma experiência pessoal e profunda, onde o praticante é convidado a ingressar em si mesmo, explorando o mundo interior que o sustenta, até descobrir a verdade última: sua própria identidade.

A prática desenvolve-se em três planos, Kihon, Kata e Kumite.  No primeiro, praticam-se os movimentos isoladamente, ou em breves conjuntos e sequências, procurando emprestar-lhes a técnica, que nada mais é do limpar-lhes as impurezas, até que surge o movimento imaculado, o melhor que o corpo pode produzir.  No segundo plano, praticam-se os movimentos em sequências longas, sempre a partir de valores (equilíbrio, base, força, determinação, liberdade, introjeção) simbolizados pelo conjunto que representam.  Finalmente, no terceiro plano, abandonamos o mundo interior, a introspecção, e nos voltamos para o outro.  É a hora de lutar.

Kihon significa dividir, partir para conhecer.  É cartesiano.  Kata tem origem no sânscrito (kafu), velho idioma da Índia, e significa afastar maus pensamentos, isto é, dominar a mente que se corrompe pelo ócio, impondo-lhe rotinas.  Finalmente, kumite representa a expressão definitiva de todos os fenômenos internos na relação com o outro, o adversário, o mundo.

Trata-se, assim, de uma viagem para o interior e, depois, ao exterior.  Um poderoso método de autoconhecimento, também de especulação filosófica, em especial metafísica, como é próprio ao Zen, que concede ao nome, Karate, o seu sufixo, Do (Karate-Do), ou seja, caminho.

Finalmente, o nome Karate é composto por dois ideogramas, isto é, “Kara”, que significa vazio, e “te”, mãos.  O vazio, vácuo ou nada, para muito além da significância das mãos desarmadas, sendo elas próprias transformadas em armas, deriva no Zen, representando o quinto elemento, que se junta aos demais (terra, ar, água e fogo) para compor a cosmologia do Zen.  

O desafio sempre será entendê-lo. Parecendo interessante, venha praticar.

Fernando Malheiros Filho
Advogado e Professor de Karatê-Dô Shotokan Tradicional 5º Dan (ITKF/JKA)